Marajó, mais que ilha, é um arquipélago. Conta com centenas de ilhas e de rios. Uma dessas ilhas, por exemplo, a ilha Caviana, tem aproximadamente 100 km de comprimento por 50 km de largura. Existe aí uma exuberância de água e de selva: seus inúmeros rios são as estradas e as embarcações, o meio normal de transporte. Das nove paróquias da Missão, sete possuem barco próprio para realizar os trabalhos pastorais nas comunidades eclesiais de base espalhadas pela floresta.
Desde que o seu primeiro Bispo, Dom Frei Gregório Alonso, tomou posse da Missão em Soure, aos 19 de outubro de 1930, passando pela administração de Dom Frei Alquílio Álvarez, até chegar a nossos dias, quando a mesma se acha governada por Dom Frei José Luis Azcona, também agostiniano recoleto como os dois primeiros, um longo caminho se percorreu, muitos objetivos se alcançaram, embora reste ainda, é verdade, muito por fazer, até que Marajó chegue a ser uma Igreja particular capaz de caminhar com as próprias pernas.
Fazendo um pouco de história, quisera recordar que a Santa Sé entregou aos cuidados da Província de Santo Tomás de Vilanova a missão de Marajó, três anos depois que a mesma Província recebera a missão de Lábrea. Tal fato testemunha a favor do espírito missionário que existia na Província e que deve continuar vivo, contribuindo, deste modo, com a rica tradição missionária da Ordem. É inegável o importante trabalho pastoral realizado pelo grande número de missionários enviados para Marajó, um trabalho que continua a realizar-se.
Podemos dividir a história da Prelazia de Marajó em duas etapas, a saber, a primeira delas desde a sua criação até 1977, e a segunda, desde então até os nossos dias. Por que o ano de 1977 divide em dois períodos a história de Marajó? O que aconteceu de extraordinário naquele ano? Entrou então em Marajó a brisa agradável das comunidades eclesiais de base.
1930 – 1977, as “desobrigas”
Os missionários, desde o primeiro momento, tiveram que enfrentar muitas dificuldades. O encontro com a imensidão dos rios, com a espessura da selva, com a dureza do clima, com a pobreza, com as enfermidades tropicais, com o analfabetismo do povo etc. representou para eles um grande desafio. Começaram o seu trabalho pastoral ao estilo da época: catequese, pregação e sacramentos. Podemos dizer que era uma Igreja que dava prioridade à administração dos sacramentos.
Os missionários não permaneciam na sede dos centros de missão, esperando que o povo fosse até lá. Eles se sentiam também enviados a esse povo disperso pela selva, com cuja salvação deviam preocupar-se. Inspirados na parábola do Bom Pastor, os missionários iam a esse povo perdido pela imensidão dos rios e da floresta, realizando as famosas “desobrigas”, nas quais os fiéis recebiam os sacramentos e ficavam livres do peso da obrigação de recebê-los anualmente. O povo católico, que vivia na floresta, esperava os missionários em locais previamente determinados. Os encontros realizavam-se normalmente em casas de famílias amigas, grandes colaboradoras dos missionários, que acolhiam com muito carinho tanto os padres como o povo. Os fiéis vinham navegando pelos rios em pequenos barquinhos a remo, aguentando o sol, a chuva, as tormentas e a fome dentre outras coisas.
Os missionários enfrentavam dificuldades ainda maiores, já que suas viagens duravam bastantes meses e seu meio de transporte era o barquinho a remo. Posteriormente incorporariam a vela, contando, a partir de então, com a ajuda do vento. Durante os seis meses da estação chuvosa, chove muito em Marajó. Durante os meses secos do verão, o sol é muito forte. Cada viagem que os missionários realizavam era rodeada de perigos diversos. Imaginemos, por exemplo, o sofrimento do missionário doente, a muitas horas de distância da cidade mais próxima.
Os missionários que trabalharam em Chaves, por exemplo, tiveram que desafiar também a “pororoca” e as fortes correntes do Amazonas. Nós, missionários de hoje, reconhecemos, com grande admiração, a vida heroica dos missionários da primeira época das “desobrigas”. Os nossos barcos são agora mais confortáveis e seguros. Por outro lado, nos dois centros de missão que não se utilizam dos rios para o trabalho pastoral, as estradas também melhoraram bastante. As cidades estão bem mais atendidas no que concerne à assistência médica, disponibilidade de remédios etc. Os perigos de hoje são menores que os de outrora.
1977 – 2009, comunidades de base
Por que se chamam comunidades eclesiais de base? Qual o significado dessas palavras? Ora, são comunidades, porque seus membros realizam a convivência e a participação. Eles se reúnem, se conhecem, vivem a fraternidade cristã, partilham, sentem-se amigos. Põem a sua fé em comum, bem como os seus talentos e o seu tempo. Ajudam-se e caminham juntos. São eclesiais, porque se sentem Igreja, Povo de Deus, vivendo em comunhão com os Pastores. Celebram os sacramentos. Sentem-se comunidades missionárias, enviadas para evangelizar.
São comunidades de base, porque seus membros são pessoas humildes do povo. Muitos deles são “caboclos”, analfabetos, gente sem cultura, mas com grande sabedoria, o que lhes permite conhecer o mistério de Deus. Nelas não existe discriminação por motivo algum. Cada comunidade, etnicamente falando, é como um arco-íris: una mistura de cores diferentes numa maravilhosa harmonia de aceitação, entendimento e comunhão.
Todos encontram um espaço para opinar, realizar trabalhos, descobrir os próprios talentos e colocá-los a serviço dos irmãos. Como nos dizem os Bispos da América Latina e do Caribe: “Nas pequenas comunidades eclesiais, temos um meio privilegiado para chegar à Nova Evangelização e para chegar a que os batizados vivam como autênticos discípulos e missionários de Cristo” (AP 307).
Igreja de Afuá. Justiça, denúncia e martírio
Tal situação, pastoralmente muito importante, apresentou-se como consequência da reforma pós-conciliar. Naquele tempo, os padres Frei Jesús Cizaurre e Frei Juan Antonio González implantavam as comunidades eclesiais de base em Afuá. Imediatamente as outras paróquias: Breves, Portel, Anajás etc. abririam suas portas às comunidades. Com elas, entraram ares renovados de vida eclesial em Marajó. Era uma forma diferente de ser Igreja.
As comunidades estendiam-se já com muita força pela América Latina, tendo como fonte de inspiração o Concílio Vaticano II, e, ao mesmo tempo, mostravam a Igreja como Povo de Deus, em que os leigos começavam a descobrir seu importante lugar, com todos os seus direitos e deveres. Era como uma volta às origens, às raízes. Era a Igreja tal como aparece no livro dos Atos dos Apóstolos: uma Igreja-comunidade.
As comunidades expressam uma Igreja mais fraterna, alimentada com a palavra de Deus e com a Eucaristia, fazendo-se presente na vida social. Uma Igreja missionária e profética, que anuncia y denuncia, e, por isso, uma Igreja perseguida, banhada no sangue de muitos mártires. Uma Igreja em que os próprios leigos ocupam seu espaço e que é muito sensível aos valores da fraternidade, dos direitos humanos, da justiça e da paz, com uma opção preferencial pelos pobres.
Do “eu” ao “nós”
Este modelo de Igreja, fundamentado nas comunidades, corresponde à Igreja sonhada por Jesus, em que a fraternidade é um valor muito importante. É um tipo de Igreja diferente. Não é a Igreja do eu, mas a Igreja do nós. Não é a Igreja em que eu procuro salvar-me. É a Igreja em que procuro salvar-me junto com os meus irmãos, a Igreja em que cada um se empenha na salvação dos outros, a Igreja em que todos os seus membros agem no mundo como discípulos e missionários de Jesus.
Não uma Igreja em que os leigos são espectadores dos trabalhos, mas a Igreja em que os leigos são protagonistas e assumem as próprias responsabilidades. Uma Igreja cujas paróquias não são apenas locais de culto, mas também escolas de fé e de evangelização, uma família, em que todos se sentem irmãos e vivem como irmãos. Desta forma, cada paróquia tenta ser comunidade de comunidades, ou seja, uma grande comunidade, porque funcionam nela pequenas comunidades.
A vivência comunitária é, portanto, um dos eixos que se devem procurar na Igreja, conforme as palavras dos Bispos latino-americanos: “Nossos fiéis procuram comunidades cristãs, onde sejam acolhidos fraternalmente e se sintam valorizados, visíveis e eclesialmente incluídos. É necessário que nossos fiéis se sintam realmente membros de uma comunidade eclesial e co-responsáveis em seu desenvolvimento. Isso permitirá um maior compromisso e entrega em e pela Igreja” (AP 226 b). Todos os missionários que trabalham em Marajó têm a satisfação de declarar-se convencidos e entusiastas das comunidades eclesiais de base, cujo número atual chega, aproximadamente, a 500.
Clero nativo
Depois de 79 anos de duro trabalho pastoral em Marajó, muitas metas se alcançaram, mas outras muitas ainda precisam atingir-se. Apesar das muitas dificuldades e de ser bem grande o desafio, os missionários são conscientes de que este trabalho, que deve ser realizado por todos, não pode parar. Hoje, a Missão caminha com passos firmes para, num dia não muito longínquo, ser elevada a Diocese.
Para isso, os dois seminários que funcionam na Prelazia desempenham um importante papel. O seminário menor localiza-se em Soure, que é a Sé episcopal, e conta, neste ano, com 11 seminaristas. O seminário maior funciona em Belém, com 7 seminaristas.
A Prelazia conta, além desses, com um candidato que já concluiu os estudos eclesiásticos e está esperando para ser ordenado diácono. A pastoral vocacional da Prelazia dispõe ainda de um padre dedicado de modo exclusivo à sua organização. A partir de 1990, ano em que o primeiro sacerdote autóctone foi ordenado, o peso da evangelização vem sendo levado conjuntamente pelos agostinianos recoletos e pelos sacerdotes diocesanos. Atualmente, a Prelazia possui dez sacerdotes diocesanos e dez agostinianos recoletos, que atendem 9 paróquias e os seminários menor e maior.
Pouco a pouco, os sacerdotes diocesanos aumentam em número e vão assumindo paróquias. No passado mês de abril, a Ordem dos Agostinianos Recoletos entregou ao Bispo a paróquia de Afuá, pela qual passaram, ao longo de 63 anos, trinta missionários recoletos. Até pouco mais de uma década atrás, todas as paróquias eram administradas pelos agostinianos recoletos.
Agora, a realidade é diferente. Isso é uma boa notícia, porque justamente essa é a finalidade da Missão: chegar a ser uma Igreja particular bem constituída, capaz de caminhar com suas próprias pernas, capaz de ser conduzida por sacerdotes autóctones em sua maioria. Apesar de as coisas estarem bem encaminhadas, alguns anos ainda precisam transcorrer para que tal coisa suceda.
A vida religiosa também se faz presente em Marajó. Além dos agostinianos recoletos, trabalham ali as agostinianas missionárias, as irmãs da Providência de GAP, as irmãs de Sant’Ana e as filhas da Divina Graça. Várias comunidades de vida da renovação carismática marcam igualmente presença em Marajó.
A ilha de Marajó sempre foi um território pobre. Ameaças de morte
Se a ilha de Marajó – que forma parte do estado brasileiro do Pará, o qual já é, por sua vez, um estado pobre – sempre foi um território pobre, abandonado pelos políticos, com um bolsão de pobreza muito grande e com um dos mais baixos índices de desenvolvimento do Brasil, poderíamos dizer que, ultimamente, a situação piorou e as previsões para o futuro são ainda mais pessimistas.
A causa deste empobrecimento são as últimas normas estatais e federais, que têm o objetivo de preservar a Amazônia: proibição de cortar madeira, fechamento de serrarias, aplicação de multas vultosas às pequenas fábricas clandestinas de palmito etc. Tais medidas, que vieram com muitos anos de atraso, paralisam a zona rural, despovoando-a, por propiciar em grande êxodo para a cidade e acarretar todos os problemas que daí derivam, a saber, alto grau de desemprego, violência, prostituição infantil, drogas e alcoolismo.
A Igreja encontra-se, em consequência deste modelo de sociedade que vai se formando, ante uma realidade nova, ante grandes desafios e com o dever pastoral de enfrentar estes graves problemas. Como uma Igreja profética e encarnada, assume o forte compromisso de denunciar, em nome de Jesus Cristo, tudo aquilo que atenta contra os valores do Evangelho.
Diríamos que certas realidades bem claras e desafiadoras estão como que a configurar um novo Marajó: por um lado, as injustiças e os vários problemas sociais tais como o desemprego, o alto nível de pobreza, o tráfico de drogas, o alcoolismo, o baixo índice de desenvolvimento humano, a violência, a prostituição infantil, o tráfico de pessoas, a escravidão, a fome entre outras coisas; por outro lado, o insistente assédio e, até poderíamos dizer, a perseguição que o povo católico está sofrendo por parte das Igrejas protestantes e das seitas, e que está mudando a realidade religiosa de Marajó, chegando alguns municípios da Prelazia a ter quase 50% de protestantes.
Esta situação tão peculiar pede aos gritos que os missionários entrem numa luta em defesa dos direitos humanos, em defesa dos pobres e da identidade católica do nosso povo. Em suma, essa Igreja profética que luta por uma sociedade diferente, a partir dos valores do Evangelho, transforma-se numa Igreja perseguida. Tal é a explicação das ameaças de morte que, ultimamente, Dom Azcona vem recebendo e que algum que outro missionário agostiniano recoleto também recebeu.
A Igreja católica é a Igreja dos pobres, aquela que ajuda o povo carente. Junto aos pobres
Um dos trabalhos mais importantes realizados em Marajó, nos últimos anos, são os projetos sociais que funcionam nas paróquias, cujo objetivo é o de ajudar o povo carente nas áreas da educação, da saúde, da alimentação etc. Noutras palavras, procura-se atenuar o sofrimento do povo, através de iniciativas sociais. Tais projetos sociais atingem, também, outra finalidade importante: a evangelização das pessoas beneficiadas por eles e o incentivo a que essas pessoas participem na Igreja e não a abandonem.
Os projetos sociais da Igreja católica contribuem muitas vezes para frear o crescimento das Igrejas protestantes e das seitas. Através da experiência dos projetos sociais, muitas pessoas percebem que as Igrejas protestantes e as seitas exploram o povo, ao passo que a Igreja católica é a Igreja dos pobres, aquela que ajuda o povo carente.
Deste modo, os projetos sociais têm igualmente uma importante dimensão evangelizadora, em razão da qual a Igreja católica é mais valorizada pelo povo. Por isso os projetos sociais em Marajó não podem parar. Quantos mais projetos houver, tanto melhor.
Espírito missionário
Apesar de a Prelazia ser uma Igreja particular em formação, que ainda se defronta com muitas carências e limitações e que, portanto, precisa de muita ajuda de fora, contudo, existem muitas coisas positivas em Marajó, como resultado de um trabalho de muitos anos. Em geral, funcionam bem diversas pastorais, existem grupos muito eficientes e comunidades bem organizadas e com muita participação.
Em muitos dos casos, as paróquias possuem boa organização e boa estrutura pastoral. Muitas paróquias gostariam de ter a vitalidade de certas paróquias de Marajó. Em 2009, a Prelazia conta com 342 catequistas e 3.126 catequizandos nas paróquias “urbanas”. Na zona rural, a realidade aproximada desta pastoral é de 750 catequistas e 10.500 catequizandos.
Para a Ordem dos Agostinianos Recoletos, Marajó constitui um acicate do espírito missionário presente em todos os seus religiosos. Sempre foi assim: a perda do espírito missionário numa família religiosa é consequência do relaxamento da vivência dos conselhos evangélicos. Pelo contrário, quando o entusiasmo pela Missão é uma realidade, manifesta-se que os valores da espiritualidade, do compromisso apostólico e da comunhão fraterna fazem-se presentes.